Especial, Gourmet, Superior, Tradicional e Extraforte. Afinal, o que é um café de qualidade?

Por Maria Mion

O café foi abraçado pelo mundo por conta de seu alto poder estimulante. Rapidamente os comerciantes se deram conta que os consumidores não estavam muito preocupados com sabor, e a qualidade ficou por muitos séculos em segundo plano. ~Qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência.

Pirâmide de sacas de café em São Paulo, 1963
O foco na qualidade da bebida teve início tímido nos anos 60. Mas o ponto de virada aconteceu apenas na década de 80, quando a busca por alimentos de melhor qualidade e movimentos como Slow Food, Fair Trade (Comércio Justo) e Alimentos Orgânicos começaram a ganhar força. Nessa mesma década foi fundada a SCA (Specialty Coffee Association) e os Cafés Especiais surgiram influenciados por esses movimentos, buscando se distinguir do café commodity pela qualidade e melhores sabores. 

Neste texto você encontrará informações sobre o surgimento das categorias de qualidade no Brasil, o que as difere, os principais defeitos dos grãos, seus impactos sensoriais e porque um Café Especial é Especial.

Qualidade, um conceito relativo?

“A qualidade não existe num vácuo, existe num contexto ou recorte relativo às referências de quem está consumindo” 

— Harry T. Lawless · Hildegarde Heymann, em Sensory Evaluation of Food.

Através dessa definição, podemos entender que a qualidade é compreendida de maneira subjetiva. Nossas percepções estão ligadas a experiências anteriores, sem esquecer da carga genética e cultural, que variam de acordo com a população e formam um conjunto único de percepção para cada indivíduo. 

Logo, o que eu considero um bom café, pode não ser bom pra você e vice versa.

Nossa experiência individual é subjetiva, mas é necessário usar parâmetros objetivos para discutir qualidade.

Categorias de qualidade ABIC

A indústria estabeleceu parâmetros para poder distinguir produtos de melhor ou pior qualidade. Para isso foram criados métodos de avaliação e controle de qualidade, uma forma de colocar esse produtos numa régua para assim poder separá-los em categorias e até mesmo definir o que é uma qualidade inaceitável para um café, por exemplo.

No Brasil do final da década de 80, mais de 30% do café disponível no mercado interno burlava a legislação com impurezas acima do limite de tolerância e/ou mistura de outras substâncias. Em 1988 uma pesquisa de hábitos do consumidor brasileiro de café demonstrou que 67% das pessoas acreditavam que “café puro era apenas o exportado – o de consumo interno, infelizmente, era sempre fraudado”. Essa crença está fortemente enraizada na nossa cultura e ainda hoje grande parte da população crê nisso.

Nesse cenário a Associação Brasileira da Indústria de Café criou o Selo de Pureza ABIC, em 1989, vigente até hoje. Esse selo garante que o café está livre de impurezas como cascas, paus, milho, centeio, cevada etc. Veja bem, um café com o selo possui 100% de grãos de café — mas não há garantia que sejam grãos livres de defeitos ou da safra atual.

Curiosidade: Assista abaixo o vídeo publicitário de lançamento da campanha com o garoto propaganda Tarcísio Meira, grande galã da época.

Vídeo: Por trás deste selo

As categorias Extraforte/Tradicional, Superior e Gourmet foram criadas apenas em 2006, pelo Programa de Qualidade do Café. Elas levam em conta não apenas as impurezas como também a qualidade da bebida. Não pretendo me aprofundar, mas compilei na tabela abaixo as principais informações de cada categoria. É possível encontrar mais detalhes na norma que rege o programa, disponível no site da ABIC.

https://www.abic.com.br

A seguir explico quais são os 3 principais defeitos do café e como prejudicam o sabor da bebida. Confesso que a abordagem focada em defeitos não é a minha preferida, mas talvez seja a mais simples para uma compreensão rápida sobre qualidade.

Grão Preto, Verde e Ardido – os principais defeitos do café

Fonte: Maria Mion

Grão preto

Causa: Apodrecimento de grãos imaturos e/ou frutos que permaneceram em contato com o chão por longo período.

Impacto sensorial: Sabor químico, úmido, mofado, iodo, gaze, borracha, medicinal, cloro.

Grão verde

Causa: Colhido antes da hora, frutos imaturos, ainda verdes.

Impacto sensorial: Sabores “verdes”, herbais, grama, adstringência (que amarra a boca), aspereza.

Grão ardido

Causa: Colheita atrasada, permanência prolongada dos frutos em contato com o chão úmido e/ou manejo inadequado do terreiro e/ou secador. Fermentação acética.

Impacto sensorial: Sabor de vinagre (ácido acético), podre, cebola, alho, azedo, vinho oxidado.

Gourmet então é a mesma coisa que Especial?

 

Esse é um ponto que gera bastante confusão, pois no Brasil o café pode ser analisado e classificado usando a metodologia nacional da ABIC e/ou a internacional da SCA. De modo geral podemos afirmar: todo Café Especial pode pertencer à Categoria Gourmet, mas nem todo Café Gourmet pode pertencer à Categoria Especial.

 

Para entendermos melhor: Um café para ser Especial é avaliado sensorialmente, seguindo a metodologia SCA. São 10 atributos avaliados numa escala de 10 pontos cada, entre eles: aroma, sabor, acidez, corpo, doçura etc; somando assim o máximo de 100 pontos. Sendo Café Especial aquele que atinge o mínimo de 80 pontos. Cafés submetidos a escala SCA, que chegam aos 80 pontos, certamente atingem a pontuação da escala ABIC e também podem ser classificados como Gourmet. Mas nem todo café que é classificado como Gourmet na escala ABIC tem qualidade suficiente para atingir a pontuação mínima dentro da escala SCA.

Cafés Especiais possuem maior complexidade sensorial, pois exigem mais cuidado no plantio, colheita, secagem, seleção de grãos, torra e preparo. Na xícara podemos sentir todos esses detalhes, nuances e características de origem, reflexo do trabalho bem executado de muitas pessoas em todas etapas.

Muitas dessas informações sobre origem, colheita, secagem, variedade, tipo de torra, altitude etc, podem ser encontradas nas embalagens dos Cafés Especiais, garantindo assim mais conhecimento sobre o que estamos consumindo.

Café Especial e os selos

 

No Brasil, a BSCA (Associação Brasileira dos Cafés Especiais) emite um selo de qualidade em Cafés Especiais, mas são poucos os cafés que podemos encontrar com ele.

O selo qualifica um lote específico, tornando financeiramente inviável para pequenos produtores certificarem pequenos lotes. Por essa razão, em sua maioria, quando encontramos Cafés Especiais certificados, são de grandes marcas que compram lotes de grandes produtores.

Existem também os selos de Indicações Geográficas, que são divididos em duas modalidades: Indicação de Procedência — região reconhecida pela tradição na produção de determinado produto; e Denominação de Origem — região reconhecida pela característica de sabor e qualidade, que se devem ao meio geográfico, incluindo fatores naturais e humanos.

O Cerrado Mineiro e a Mantiqueira de Minas, por enquanto, são as únicas regiões que possuem Denominação de Origem. Já com Indicação de Procedência temos o Norte Pioneiro do Paraná, Alta Mogiana, Pinhal e Oeste da Bahia.

Categorias de qualidade no Brasil – um resumo visual

Fonte: Maria Mion

Café Especial não é só café, é também consumo consciente 

Bem, são muitas informações e um pouco confusas mesmo, tentei aqui dar conta de explicar o que são as categorias e como nos guiamos através delas para fazermos melhores escolhas. 

Ao final gostaria de acrescentar que qualidade vai além de escalas numéricas, atravessa também sustentabilidade social, ambiental e econômica. É fundamental pensarmos em como consumimos, o que consumimos, e principalmente de quem consumimos. Desse modo reconhecemos nosso papel e responsabilidade enquanto consumidores, fazendo escolhas conscientes visando um mercado mais equilibrado e ético. 

Café bom é aquele que você gosta e também aquele que respeita a vida dos que o colhem, produzem, cuidam do terreiro, transportam, classificam, torram, pesquisam, preparam e servem.

Bibliografia e Referências

Livros

The Craft and Science of Coffee – Britta Folmer

Sensory Evaluation of Food – Harry T. Lawless · Hildegarde Heymann

História do Café – Ana Luiza Martins

História do Café no Brasil e no mundo  – José Teixeira de Oliveira

História do Café no Brasil – Euripedes Malavolta

Apostilas 

Café: classificação e degustação – Coleção SENAR 

Série Tecnológica Cafeicultura: Defeitos do café – João Eudes de Rezende – Emater- MG

Materiais Complementares

Sensory Lexicon – World Coffee Research

Roda de Sabores – SCA 

Roda de Sabores – Counter Culture Coffee 

Protocols & Best Practices – SCA

Norma de Qualidade Recomendável e Boas Práticas de Fabricação de Cafés Torrados em Grão e Cafés Torrados e Moídos – ABIC

Sites

https://bsca.com.br/certificacao

https://www.abic.com.br

https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/sociedade-e-economia/22920-indicacoes-geograficas.html?=&t=acesso-ao-produto

Revisão:

Amanda Lôbo e Pablo Campos.